terça-feira, 26 de abril de 2011

O Casamento e O Beijo

Era o casamento de um conhecido. Próximo o suficiente para que eu fosse convidado pra cerimonia na igreja, mas não para a recepção. Tive que tirar o terno da naftalina, ensaiar o nó da gravata até parecer aceitável e espremer os pés no sapato preto (combinando com o cinto). Nunca gostei de usar terno e muito menos de casamentos, mas mesmo assim tive que ir. Certos compromissos a gente tem que ir.

Enfim. Lá estava eu, vestindo um terno puído e velho, com sapatos mal engraxados e sorriso amarelo. Não conhecia quase ninguém, afora os noivos e provavelmente dava a impressão de ser um vagabundo diante dos paletós bem passados e vestidos longos.  Durante aqueles primeiros momentos da noite, enquanto as pessoas circulavam pela porta da igreja se cumprimentando, fiquei meio perdido. Tinha um maço de cigarros no bolso de dentro do meu paletó, mas tive medo de receber olhares desaprovadores, então deixei quieto.

Óbvio que eu não estava com a menor vontade de estar ali e os próprios noivos mal notaram a minha presença. Se não tivesse ido, por outro lado, a minha ausência seria escandalosa, inegável, inadmissível. Fiquei tentando inventar histórias na minha cabeça pra tornar a ocasião mais divertida: imaginei ETs invadindo a Terra no exato momento em que os noivos diriam “sim”, com armas laser, prontos para escravizar a humanidade mesquinha com seus ternos de três botões e nós de gravata windsor.

Chegada a hora todos foram entrando na igreja como um rebanho de ovelhas. Me juntei ao final da fila, apático. Que escolha eu tinha? A obrigação de comparecer me arrastara até ali, então não podia fazer nada a não ser ir até o final daquilo. Me sentei num banco ao fundo, bem atrás de uma pilastra de forma que não era possível ver a cerimônia. O padre subiu no altar e esperou alguns instantes enquanto as pessoas se acomodavam. Um casal de retardatários sentou no mesmo banco que eu, me fazendo sentir ainda mais só.

A cerimonia começou com uma música clássica que já tinha tocado em algum filme. Não sei mais de que filme, mas me lembro de me levantar, cheio de preguiça, pra ver os padrinhos e madrinhas atravessar a nave naquele passo incerto, quase um trote, tentando não parecer nem muito rápidos e nem muito lentos. Depois do quarto ou quinto casal, a igreja caiu em um silêncio reverente enquanto eu segurava um espirro que me fustigava a ponta do nariz. A clássica marcha nupcial pareceu tirar o fôlego de todos os presentes. Olhei pro noivo, empertigado ao lado do padre e dos padrinhos e não consegui deixar de comparar a música a marcha fúnebre.

A noiva fez sua entrada. Diferente do noivo, que me pareceu nervoso, ela estava triunfante. Tinha toda a atenção da igreja sobre si. Consegui ver nos olhos dela que saboreava a inveja de cada um dos bem vestidos do recinto. Andou com elegância e lentidão, as costas eretas, o véu cascateando branco pelas costas, o vestido se arrastando pelo chão. Tinha o cabelo armado, mas não me peçam pra descrever isso. Simplesmente não o sei. Uma verdadeira encheção. Em frente ao altar, o pai da moça a entregou pro noivo, que brilhava com o suor na testa.

Finalmente a platéia teve permissão de se sentar. Sinal de que o padre estava prestes a desabar aquele sermão caprichado sobre a vida, o universo e tudo o mais. Senti o maço de cigarros pesando dentro do meu bolso, quase como se chamasse meu nome. Olhei para os lados e deslizei até o final do banco. Me levantei com suavidade e saí por uma das portas laterais.

O ar da noite bateu contra o meu rosto. Era meados de Junho e fazia aquele frio de céu limpo, sem nuvens. Não reparei na Lua. Talvez já tivesse desaparecido por trás dos prédios. Mas, mesmo que houvesse Lua, aquela era uma noite pras estrelas. Abri o maço e tirei um cigarro. Deixei-o na boca e continuei olhando pro céu enquanto pegava o isqueiro.

Tem uma coisa no céu de inverno que acorda no meu peito uma solidão ferrada. Talvez seja o frio, a distância das estrelas ou ainda a amplitude do céu, que me faz também sentir pequeno e afastado de tudo. Ou talvez seja a própria solidão se agitando dentro de mim, pedindo pra sair. Não sei mesmo. 

De qualquer forma, nessas horas, o cigarro me faz companhia. A bem da verdade fumar é uma desculpa pra ficar sozinho e curtir um bocado de solidão. Fiquei lá, olhando as estrelas e deixando a fumaça espiralar para o alto antes de ser levada pelo vento. Me perdi em devaneios mesmo e não lembro sobre o que pensei. Quando dei por mim foi num sobressalto.

- Seu cigarro é diferente... Tem um cheiro gostoso.

De cara me senti um pouco invadido. Era como se alguém entrasse bem no meio dos meus pensamentos sem pedir licença. Quando me virei e vi quem tinha dito aquilo, deixei essa bobeira de lado e decidi que não me importava que ela invadisse a minha vida. Tinha os cabelos negros, compridos e soltos. Os olhos eram igualmente escuros: uma cor de breu. O nariz fino e alongado era adornado com uma argola discreta de prata. O salto não era muito alto e o vestido vermelho, simples, combinava com o batom vinho escuro.

- Ah! É sim...

Eu sempre fui tímido. Especialmente com mulheres. Mais ainda com mulheres atraentes. Pior ainda com mulheres despojadas. Ela andou na minha direção, um sorriso curto na boca de lábios finos e bem desenhados. Não cumprimentou nem se apresentou.

- Qual é esse? Black?
- Não, não. Esse chama MacBeth.
- É de quê? Chocolate?
- Neutro. Quer um? - Tirei o maço e ofereci.
- Não. Não vou fumar um inteiro. Só quero experimentar um pouco.

Ela me estendeu dois dedos, pedindo que eu colocasse o cigarro entre eles e, assim que o fiz, levou-o à boca e tragou, avivando a brasa por um instante. Os olhos se estreitaram e tragou de novo. Me devolveu o cigarro com a marca de batom no filtro.

- É gostoso. Suave, né?
- Só parece suave por causa do gosto, mas é um pouco forte.
- Ah...

Hesitei antes de levar o cigarro à boca. A marca daqueles lábios tava impressa ali, no tubinho de tabaco que eu guardava na mão. Quando um vento soprou e trouxe o perfume dela na minha direção levantei o bendito e saboreei devagar a fumaça quente e espessa. A mulher sorriu do meu prazer evidente. Será que tinha entendido que era o batom dela ali, onde eu punha a boca, que me fazia provar com mais intensidade o tal cigarro?

- Você faz uma cara boa quando fuma.
- Eu relaxo com cigarro.
- Deixa eu experimentar mais um trago.

Passei o cigarro de volta, feliz pela companhia. Tem quem não goste de compartilhar cigarro. Às vezes até concordo com isso, mas nem sempre. Algumas vezes é bom dividir o cigarro, como é bom dividir a cerveja. Pelo menos nesse caso era. Dessa vez ela ficou com o cigarro por um instante breve na boca e me devolveu antes ainda de soprar a fumaça pro vento.

-Deixa eu voltar lá. Prazer, viu? E obrigada pelo cigarro!
-Que isso! De nada. Prazer foi meu...
 
Terminei de fumar sob um vento bem frio, me xingando por não ter nem perguntado o nome da moça. Joguei a brasa fria na direção da rua e voltei pra dentro da igreja, de volta para o lugar atrás da pilastra.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Destino

O seguinte conto é o segundo de uma série de narrativas descontínuas. A primeira parte se chama A Batalha do Cavaleiro Branco e foi publicada aqui.

A noite se espalhava para além do horizonte negro, estrelas cintilantes cobrindo o céu sem lua. Do alto da montanha era possível esticar a vista para formas misteriosas, mesmo sob a escuridão. O homem que se sentava diante da fogueira olhava fixamente para o Sul, perdido em algum pensamento ou memória enquanto a dança das chamas faziam sombras estranhas em seu rosto, que lhe conferiam expressões doídas de arrependimento.

O vento incessante parecia gemer, como se fosse o grito de sofrimento dos mortos em um campo de batalha ainda encharcado de sangue. Do outro lado da fogueira, uma sombra encapuzada se protegia do frio e um par de olhos escuros faiscavam com a parca luminosidade. Havia algo naquela figura envolta em mantos que dava a impressão de reverência, como se a própria noite se curvasse à sua presença.

-Por que busca Destino? - A voz não passou de um sussurro que, de alguma forma, atravessou o vento gélido, e soou como o crocitar de um corvo. Um corvo muito velho. O homem, que já havia visto morte e carnificina, enterrara amigos e inimigos e vivido pela proeza do braço da espada, sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e sabia que não era por causa do vento.
- Eu busco mudar o destino. - Respondeu o homem, monótono. Voltou o olhar para a figura sombria, as chamas dando aparência endurecida para o rosto.
- É o que todos querem. - Replicou o grasnar de corvo com desprezo e a figura se aproximou da fogueira, revelando, ao contrário da impressão de velhice e decreptidude, um rosto jovem de uma mulher atraente, de longos cabelos negros olhos verdes que nunca piscavam.

- Eu busco tomar as rédeas do meu próprio destino. - Insitiu o homem. A mulher ficou em silêncio por alguns instantes, observando aquele que ousara proferir palavras tão corajosas. Imaginou se ele tinha idéia do significado daquela declaração.

- Qual o seu nome?
- Hutlhor.
- Hulthor apenas? Nenhum título, terra-natal ou família?
- Nenhum que eu reivindique agora. - Respondeu resoluto, sustentando o olhar da mulher. Agora que via o rosto, a voz não parecia mais o grasnar de um corvo, mas um tom macio e ao mesmo tempo rouco. O fogo deu a impressão de que a mulher sorria discretamente com o canto dos lábios, um sorriso indecifrável, secreto, mas quando ela se mexeu para apanhar algo de dentro do manto poído, o jogo de sombras varreu qualquer vislumbre dos lábios.

Hulthor se levantou, como se desafiasse o vento, a fogueira e a própria noite. E dessa vez sua voz trovejou com determinação beligerante, os olhos cinzentos se tornaram o reflexo de uma tempestade.

- Se o destino é rígido e imutável como dizem os sábios da Ordem Branca, que me ensinou e treinou para a cavalaria, então um homem pode lançar-lhe os punhos. - O olhar de Hulthor novamente se voltou para o Sul e a mulher o observava com atenção. - E eu seria capaz de fazer isso. Agarraria o destino pelos cabelos e o golpearia no rosto de pedra até que fendesse. Se o destino não é capaz de se dobrar, então eu o despedaçarei.

A mulher inclinou o tronco para frente, interessada no guerreiro que se levantava para bradar à noite. Sua mão direita saiu de dentro do manto e se estendeu diante do fogo segurando uma pequena bolsa de couro que não era maior do que um punho. E com a voz de donzela, proferiu com solenidade.

- Muito bem, Hulthor, sem títulos, terra natal ou família. Hulthor, que abandonou a Ordem Branca. Hulthor sem destino. Vou lhe revelar os segredos que os sábios cegos não compreendem. Vou lhe contar sobre Destino.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Maço Vazio

no cinza da manhã
queimo o sono
e espalho as cinzas
                         
deixo a memória no ponto
e de ônibus não me deixo sentar
assentar poeira de cigarro:
acendo outro.
E se o resto do mundo seguiu
em frente, eu me esqueci aqui

naquele dia

em que eu gritei
e você se

foi o pior.

Se depois a marugada não passa
a culpa é sua
da insônia

da sobriedade
que eu me arrependo.

da falta que me faz

do whiskey
da companhia

dos lobos
varridos pra fora de casa

daqueles uivos
dois
o meu e o seu,
lembra?

E se rio
é de amargor

e do seu choro

reviro o lixo
e dou aos cães
que são

meus sentimentos
                            nada
vazios.

          Por ti

alimento-me

de ti, a lembrança
de mim, a sentença

ao meu querer:
um verso reto,
     chato
e mal feito

mas não disfarço.